sábado, 8 de março de 2014

A MULHER INTERROMPIDA

Não foi assim tão antigamente... 
Não  foi há mais que um tempo 
mais duas metades de dois tempos meios,
que uma voz, amiga certamente,
embora longínqua, perguntou por mim
quando eu, de confusa, nem me conhecia...

Sou a mulher do meu homem,
respondia,
e a voz insistia:
- Mulher, quem és tu?
- Sou a mãe de um filho que não mora cá
e de três meninas que me querem muito,
apesar da culpa, apesar de tudo...

E a voz repetia:
- Mulher, quem és tu?

Sei que juraria que lhe não mentia
portanto insistia:
- Ninguém, senão mãe, apesar do luto!

Não cedia a voz, quando perguntava
do Espaço, do Tempo, de outras coordenadas:
- Ó mãe dos teus filhos, diz-me quem és tu!
Onde moram as tuas horas carnais?
Onde guardas o corpo quando sais
pr´a voar em busca do filho perdido?
Que fazem tuas mãos?
Que estrelas tão negras trazes nesse olhar?
Que morte tão estranha te veio buscar
esquecendo o teu corpo entre os teus irmãos?

Lá lhe respondia
sem me aperceber
que me descrevia sem me conhecer:
- Sou a mulher do meu homem
porque a mãe das minhas crias!
Procuro o que se perdeu,
o que morreu mal nasceu,
o que mais quero encontrar!

Mas a voz continuava
 sem parar de perguntar:
- Mulher, que é feito de ti?
Só a ti tens de encontrar!

Então procurei-me em mim
e vi que não estava lá...
Decidi correr o mundo
desde o abismo profundo
às mais altas cumeadas;
nadei no Ganges, no Nilo,
desci ao ventre tranquilo
das cavernas ignoradas...

Corri terra, mar e céu,
muito além do mundo inteiro!
Foi então que, de repente,
para grande espanto meu,
me encontrei num frente a frente
com um corpo nada alheio
àquela procura urgente
pois nele coube, exactamente,
a chama acesa em meu peito

e, juro,
foi então
que, pela primeira vez
em toda a minha vida,
me ri da minha imagem denegrida,
desdenhei não ser compreendida
e, inteira, me orgulhei da condição
de ser uma mulher interrompida!





Maria João Brito de Sousa – Verão 1992

(Revisto e ligeiramente reformulado)


Imagem - Bride of the Wind - Oskar Kokoscka

16 comentários:

  1. "Não cedia a voz, quando perguntava
    do Espaço, do Tempo, de outras coordenadas:
    - Ó mãe dos teus filhos, diz-me quem és tu!
    Onde moram as tuas horas carnais?
    Onde guardas o corpo quando sais
    pr´a voar em busca do filho perdido?
    Que fazem tuas mãos?
    Que estrelas tão negras trazes nesse olhar?
    Que morte tão estranha te veio buscar
    esquecendo o teu corpo entre os teus irmãos?"

    Que todas as mulheres se questionem, porque todas estão a tempo
    E já agora, que os homens façam o mesmo!

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  2. Todos nós, Rogério, homens e mulheres!


    Abraço!

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  3. ... de alguma forma o foi, Mar Arável! E decisivo, também!


    Abraço!

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  4. Há muito que acho que não vale a pena questionar...falo por mim...lindo poema, triste, magoado e verdadeiro. Beijos com carinho

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  5. Às vezes perdemo-nos de nós próprios...
    Gostei muito do teu poema, é excelente.
    Maria João, tem um bom domingo e uma óptima semana.
    Beijos.

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  6. Um beijo grande, Rosa Branca! Grata pela leitura e pelas palavras!

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  7. Não é prudente, nem saudável, que nos percamos mais do que uma vez na vida, Nilson. O sentido, aqui, é mesmo literal, meu amigo.

    Vou até aí!

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  8. Há sempre uma mensagem válida a trespassar a tua poesia!

    Feliz por te encontrar, amiga.
    Beijo.

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  9. Mulher renascida...

    belo teu poema.

    beijo

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  10. Vou lendo um a um os seus poemas e vou-me deixando cativar.
    Para quando um novo?

    Um beijo.

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  11. Muito obrigada, Ana!

    Infelizmente deixei de ter acesso a este blog. Continuo a publicar diariamente em https://poetaporkedeusker.blogs.sapo.pt/

    Bjo

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