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terça-feira, 15 de abril de 2014

RELEMBRO



(Soneto em decassílabo heróico)

Relembro um rio que em gesto resoluto
Cresce em caudal e soma em quantidade
A mesma urgência com que agora eu luto
E me dá força enquanto houver vontade;

Porque um poder perverso e dissoluto
Se nos impõe, esmagando a dignidade,
Sejamos fio de outro qualquer soluto
Que, em nos enchendo, engendre outra vontade!

Relembro o sangue em veias indomadas
E esta emergência em nós, sempre crescente,
Que nos transforma as mãos mais desarmadas

Em espada erguida sobre o prepotente
Que ensombra as águas vivas, libertadas,
Duma outra força antiga e sempre urgente!


Maria João Brito de Sousa – 15.04.2014 – 10.39h

Ao povo que, em Abril de 1974, desobedeceu a uma ordem directa e, invadindo as ruas, transformou um golpe militar numa verdadeira revolução!

A todos nós!

(Não me foi possível carregar a imagem)

terça-feira, 8 de abril de 2014

A VERMELHO! - Resposta de uma portuguesa pobre ao famigerado hino da mocidade portuguesa, em pleno Abril de 2014





1
Cá vou eu, num pranto infindo,
Chegando, chegando enfim,
Ao final de um sonho lindo
Que outro Abril criou pr`a mim…

2
Lá vou eu, já estou sentindo
Que o país se está perdendo
Se, nisto, for persistindo!

3
Ó servilismo letal
Que em roxas névoas te traças,
Vai-te deste Portugal!

4
Crer é querer quando enfrentamos
A astúcia dos nossos amos
Com lucidez, mas com “raça”!

5
Erga-se a voz conturbada
De um povo que se agiganta,
Sopre, ao vento, a bruta infâmia
Dos que, não fazendo nada,
A tornaram permitida
E, com ela, como insânia,
Gente que nunca quebranta,
População revoltada
Por milhares constituída,
Sublevação pela vida!!!

6
Que seja nossa divisa
O que a gente já não tem
Quando, assim, desde as raízes,
Nos tornam gente indecisa
Que é tratada com desdém!
Haja força que nos faça
Lutar pr`a sermos felizes!

7
Crer é querer quando enfrentamos
A astúcia dos nossos amos
Com lucidez, mas com “raça”!!!


Maria João Brito de Sousa – 08.04.2014 – 15.08h

NOTA – Toda a construção formal do poema original foi respeitada, incluindo a métrica e a divisão silábica, bem como o esquema rimático.

sexta-feira, 28 de março de 2014

SONETO A UMA LONGA, FRIA, FEIA E ESCURA TARDE DE CHUVA - Alegoria... e não só.

(Em decassílabo heróico)





Pr`a quê cantar a jovem Primavera

Que me não traga, acesa, a claridade

Que emite, lá no alto, a rubra esfera

Assim que se ergue e brilha em liberdade?



De que terá servido a longa espera

Se a chuva me roubar, pela metade,

Um céu que esconde um sol que mal tempera

Um dia que nasceu sem qualidade?



E, sob intensa chuva, a tarde fria

De que hoje vou falar, nem sei porquê,

Faz crer que o próprio verso se arrepia



Se, na estrofe final, disser que crê

Que mais depressa brilha um novo dia

Pr`a quem, no que se põe, tanto mal vê…







Maria João Brito de Sousa – 27.03.2014 – 17.37h

sexta-feira, 21 de março de 2014

ESPELHO MÁGICO, ESPELHO MEU...

Não era a minha face
que via nesse espelho...
era a de uma outra Alice
no país dos pesadelos
- a que se transmutava
ao sabor dos cogumelos
e sabia dar corda
ao relógio do coelho... -,
Não era a minha face, com certeza!

Era,
talvez,
a da Menina-do-Capuz-Vermelho
apaixonada por um lobo velho,
fugindo com ele do caçador malvado
- a avozinha
comprava os bolos no supermercado
e
todos os dias
dançava rock and roll na penumbra do quarto -...

da Bela-Adormecida
que nunca mais conseguia adormecer
e se deitava a escrever
cartas de jogo à Bruxa-Arrependida...



da Branca-de-Neve dos sete-mil-anões
devorando maçãs-desencantadas,
tentando acreditar
que nem tudo são desilusões...


da Princesa-dos-Sapatinhos-de-Cristal
a vir da discoteca às cinco e tal...


do Pinóquio,
sorrindo , no ventre da baleia,



ou
- quem  o sabe? - da Pequena-Sereia,
mas nunca a minha face!

Não era a minha face verdadeira!




Maria João Brito de Sousa - 1992/3

Imagem retirada do Google

quarta-feira, 12 de março de 2014

VARIAÇÕES SOBRE O TEMA "UMA CASA PORTUGUESA" - Décimas

Nascem selvagens, libertos,
Vindos de coisa nenhuma
Com asas feitas de espuma,
Nos momentos mais incertos
E, se engendram desconcertos,
Trazem razões que, uma a uma,
Vão dissipando esta bruma
Pr`a deixar-nos bem despertos
Pois, se de razões cobertos,
Quem nos seus versos se assuma

E com muitos os reparta
Sobre mesa igualitária
Sem intenção mercenária,
Tirará, da mesa farta,
Quanto o tirano descarta,
Numa ânsia totalitária
De refeição bem mais vária…
E, venha Zé, venha Marta,
Venha “encartado”, ou “sem carta”,
Que a festa é mais necessária

Do que muita gente pensa
Quando não falta na mesa,
Do poema, a clara franqueza
Que a comunhão torna imensa
Pois, mesmo tendo pertença,
Traga alegria ou tristeza,
Nunca é fútil nem burguesa
Porque em si própria condensa
Quanto um povo não dispensa
Se a casa for… portuguesa!



Maria João Brito de Sousa – 12.03.2014 – 17.27h

sábado, 8 de março de 2014

A MULHER INTERROMPIDA

Não foi assim tão antigamente... 
Não  foi há mais que um tempo 
mais duas metades de dois tempos meios,
que uma voz, amiga certamente,
embora longínqua, perguntou por mim
quando eu, de confusa, nem me conhecia...

Sou a mulher do meu homem,
respondia,
e a voz insistia:
- Mulher, quem és tu?
- Sou a mãe de um filho que não mora cá
e de três meninas que me querem muito,
apesar da culpa, apesar de tudo...

E a voz repetia:
- Mulher, quem és tu?

Sei que juraria que lhe não mentia
portanto insistia:
- Ninguém, senão mãe, apesar do luto!

Não cedia a voz, quando perguntava
do Espaço, do Tempo, de outras coordenadas:
- Ó mãe dos teus filhos, diz-me quem és tu!
Onde moram as tuas horas carnais?
Onde guardas o corpo quando sais
pr´a voar em busca do filho perdido?
Que fazem tuas mãos?
Que estrelas tão negras trazes nesse olhar?
Que morte tão estranha te veio buscar
esquecendo o teu corpo entre os teus irmãos?

Lá lhe respondia
sem me aperceber
que me descrevia sem me conhecer:
- Sou a mulher do meu homem
porque a mãe das minhas crias!
Procuro o que se perdeu,
o que morreu mal nasceu,
o que mais quero encontrar!

Mas a voz continuava
 sem parar de perguntar:
- Mulher, que é feito de ti?
Só a ti tens de encontrar!

Então procurei-me em mim
e vi que não estava lá...
Decidi correr o mundo
desde o abismo profundo
às mais altas cumeadas;
nadei no Ganges, no Nilo,
desci ao ventre tranquilo
das cavernas ignoradas...

Corri terra, mar e céu,
muito além do mundo inteiro!
Foi então que, de repente,
para grande espanto meu,
me encontrei num frente a frente
com um corpo nada alheio
àquela procura urgente
pois nele coube, exactamente,
a chama acesa em meu peito

e, juro,
foi então
que, pela primeira vez
em toda a minha vida,
me ri da minha imagem denegrida,
desdenhei não ser compreendida
e, inteira, me orgulhei da condição
de ser uma mulher interrompida!





Maria João Brito de Sousa – Verão 1992

(Revisto e ligeiramente reformulado)


Imagem - Bride of the Wind - Oskar Kokoscka

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

HOLOGRAMA

(Soneto “de coda” em decassílabo heróico)


Conserto o desconcerto, acerto o passo,
Pinto, esculpindo o verso que me ocorre…
As coisas que aqui faço, ou que não faço,
Transcendem sempre a carne que me cobre…

Mas, se à própria razão retiro o braço
Se o gesto me preguiça, a mão não corre,
Se, já rendida á dor, verga ao cansaço,
Perco o rumo à razão que me socorre…

Que me não faltes, mão dos gestos leves,
Que esculpes, que constróis, que remodelas,
Que, sem hesitações, aqui te atreves

A dissecar miséria e coisas belas
E a arder nos mil pavios do que não deves!
… porque há quem vá negar-te a luz das velas,

Quem queira dar-te fama e voz, tão breves
Que ocultem o sentido ao barro, às telas,
Para honrar com néon quanto nem escreves…



Maria João Brito de Sousa – 09.02.2014 – 17.07h


Imagem - "Genesis" - Jacob Epstein