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segunda-feira, 16 de julho de 2012

O COMBOIO







Que ser era aquele? Imenso, ruidoso como um interminável trovão, atacou-me com a rapidez do raio e não parou, sequer, para me dar o golpe de misericórdia. Atirou-se a mim com a voracidade do tigre e, incompreensivelmente, não ficou para se alimentar da carne que destroçara. Que estranho ser era aquele?
Levava no ventre muitos outros seres. Seres com olhos, ouvidos e mãos. Seres conflituosos, agarrados a coisas que não fazem sentido, indiferentes à dor que então me consumia.
Que ser tão estranho...
Não ameacei as suas crias. Não tentei conquistar as suas fêmeas. Se, acaso, invadi o seu território, fi-lo por absoluta necessidade. Procurava um desses seres que ele levava no ventre e a quem dediquei toda a minha vida.
Sei que estou velho e pouco atraente. Durante esta minha insana busca, raras vezes encontrei alimento. Emagreci. Vivi muitos sóis e muitas luas alimentado, unicamente, pela certeza de voltar a encontrar o meu amigo. Aquele por quem daria – e dei – a vida. Aquele que um dia partilhou comigo habitação e alimento, aquele que me pôs ao pescoço esta coleira, agora velha e sem brilho como eu, que selou entre nós um pacto sagrado e irreversível.
Eu era então um cão jovem e –perdoa-me a vaidade – bonito como poucos. Ajudei-o a educar as suas crias. Não havia cão, gato ou ser humano mal intencionado que se aproximasse delas. Guardei-lhe a porta com o meu rosnido mais assustador e mostrei-lhe a minha imensa gratidão a cada segundo do dia e da noite. Velei-lhe o sono. Quando o tempo, lá fora, gelava até aos ossos, aqueci-lhe os pés com o calor do meu corpo e, com toda a energia que me foi concedida pelo universo em que nasci, zelei e rezei pela sua saúde e alegria. Pela abundância no seu pequeno território. Multipliquei-me em carinhos e brincadeiras sempre que a tristeza lhe invadia o olhar. Lambi cada uma das suas pequenas feridas até estar seguro da sua completa cicatrização. Cacei para que nunca lhe faltasse o alimento.
Sei que também ele me amou à sua maneira... dessa  forma inacabada e insólita  que vocês usam para amar. Eu era património seu e, forte e bonito exemplar que era, orgulhava-se de me mostrar aos seus amigos. Garantia que a ele ninguém assaltaria a casa... e tinha razão. Garantia que não havia melhor cobridor do que eu, e também estava certo.
Tu, que agora me vês agonizar, hás-de encontrar o brilho dos meus olhos em muitos outros cães que encontrarás pelas ruas. Deixei, como era meu dever, semente de vida no ventre de muitas companheiras. Agora que estou de partida, evoco esses filhos da minha carne com a certeza de me ter perpetuado neles pelas muitas luas que estão por vir.
Sabes que me surpreendeste? Eras um dos seres que viajavam dentro do demónio que me trucidou. Vi-te chegar carregada de coisas estranhamente inúteis. Sacos e saquinhos contendo pequenas coisas que não amas, mas proteges. Vinhas suada e arquejante, como eu velha e gasta e, no entanto, olhaste-me com a doçura com que me olhou a minha mãe quando me pôs no mundo. No teu olhar uivaste a minha dor. Agradeço-te por isso. Não o poderia fazer com estes maxilares fracturados que pingam sangue e nesse mesmo sangue afogam o meu justificado lamento.
Pegaste num estranho artefacto que estava no teu bolso e falaste para ele. Estavas entre zangada e mansa. Mas estavas, sobretudo, determinada.
Não sei exactamente o que queres, mas sei que não desistirás. Sei, acima de tudo, que não me abandonarás até que a morte venha aliviar-me desta imensa dor. A dor que partilhas comigo e , portanto, se torna mais suportável. Cobres o meu corpo com o teu sempre que um demónio de ferro percorre, rugindo, o temível espaço que ousei pisar. De tal forma sentes o que eu sinto que espantas os meus medos e vais anulando a tremenda vontade que me impele a continuar à procura do “dono”. Mesmo sem membros. Mesmo sem sangue.
Passa uma eternidade. Cantas baixinho para mim, nessa estranha língua cheia de modulações idênticas às do meu dono. Vou-te compreendendo pouco a pouco. Já me não doem tanto os ossos triturados, já se não impõe a necessidade de encontrar aquele que, um dia, se esqueceu de mim, algures, na Marginal. Tu amas tão profunda e incondicionalmente como eu e tudo recomeça a fazer sentido. Até os estranhos artefactos que trazes contigo parecem ganhar alma e se me tornam familiares.Como se fossem prolongamentos de mim. De nós. De tudo aquilo que continuamos a ser quando ultrapassamos as fronteiras do corpo e nos diluímos na infinita serenidade de uma força que apenas vislumbrávamos. Para além do beijo que me deste no focinho no momento da libertação.



Maria João Brito de Sousa

6 comentários:

Maria Luisa Adães disse...

Que coisa maravilhosa acabei de ler, lindo e comovente demais...

Me fez lembrar "Timbuktu"
do escritor de culto, Paul Auster.

Mas este bichinho maravilhoso e culto ainda está entre nós? Diz que sim!...
Fala com Pedro e pede que ele invista na minha poesia do google.

Assim, ele não me conhece e eu que tanto gostei dele...

Diz-lhe que é poesia, (ou pretensa poesia) Modernista/Futurista.

E ele entra no mundo complexo dos
poetas...através de mim.

Um abraço,

Maria luísa

Maria João Brito de Sousa disse...

Eu bem gostaria de te dizer que sim, mas não está... o texto foi escrito há uns bons anos, em cima do acontecimento. Tudo isto se passou realmente e eu, quando ele morreu, escrevi estas linhas em sua homenagem e um pouco em protesto pela indiferença da maioria dos seres humanos que abandonam os seus companheiros de quatro patas. Saiu-me assim, com ele como narrador... foi um texto que escrevi sempre a chorar...
Quanto ao nosso Poeta, sei que ele está de férias com a família, mas ainda tem enviado o seu Chá e os seus sonetilhos... mas posso enviar-lhe um email, claro.

Um enorme abraço, amiga!

Nilson Barcelli disse...

Também já perdi um cão atropelado (e mais uns quantos de velhinhos...). Ao longo do teu maravilhoso texto, senti, por isso, que o escreveste com base em factos reais, com a alma dorida. Sei o que isso é, fui criado no meio de cães e os laços que se estabelecem são muito fortes.
Parabéns pelo excelente texto que fizeste.
Um beijo, querida amiga Maria João.

Maria João Brito de Sousa disse...

Obrigada, Nilson. Foi mesmo o relato de uma situação real e muito dolorosa. Resolvi, nem sei como pois este foi um daqueles textos que me nasceram quase compulsivamente, torná-lo narrador da sua própria história... pelo menos do seu próprio final.

Um abraço, amigo!

rosa-branca disse...

Olá amiga, fiquei comovida com este seu texto extraordinariamente belo. Também adoro animais e também os tive e sei o quanto eram meigos e fiéis. Acho, que foi dos textos mais lindos que li até hoje. Adorei. Beijos com carinho

Maria João Brito de Sousa disse...

São amigos dedicados como nenhuns, Rosa Branca. Esta short-story é baseada numa situação real... praticamente uma narrativa com a particularidade de ter sido dada a palavra ao cão que foi - sempre teria de ser assim... - o protagonista principal e o narrador do texto.
Obrigada e um grande abraço, amiga!