VISLUMBRES


View My Stats

sexta-feira, 28 de março de 2014

SONETO A UMA LONGA, FRIA, FEIA E ESCURA TARDE DE CHUVA - Alegoria... e não só.

(Em decassílabo heróico)





Pr`a quê cantar a jovem Primavera

Que me não traga, acesa, a claridade

Que emite, lá no alto, a rubra esfera

Assim que se ergue e brilha em liberdade?



De que terá servido a longa espera

Se a chuva me roubar, pela metade,

Um céu que esconde um sol que mal tempera

Um dia que nasceu sem qualidade?



E, sob intensa chuva, a tarde fria

De que hoje vou falar, nem sei porquê,

Faz crer que o próprio verso se arrepia



Se, na estrofe final, disser que crê

Que mais depressa brilha um novo dia

Pr`a quem, no que se põe, tanto mal vê…







Maria João Brito de Sousa – 27.03.2014 – 17.37h

sexta-feira, 21 de março de 2014

ESPELHO MÁGICO, ESPELHO MEU...

Não era a minha face
que via nesse espelho...
era a de uma outra Alice
no país dos pesadelos
- a que se transmutava
ao sabor dos cogumelos
e sabia dar corda
ao relógio do coelho... -,
Não era a minha face, com certeza!

Era,
talvez,
a da Menina-do-Capuz-Vermelho
apaixonada por um lobo velho,
fugindo com ele do caçador malvado
- a avozinha
comprava os bolos no supermercado
e
todos os dias
dançava rock and roll na penumbra do quarto -...

da Bela-Adormecida
que nunca mais conseguia adormecer
e se deitava a escrever
cartas de jogo à Bruxa-Arrependida...



da Branca-de-Neve dos sete-mil-anões
devorando maçãs-desencantadas,
tentando acreditar
que nem tudo são desilusões...


da Princesa-dos-Sapatinhos-de-Cristal
a vir da discoteca às cinco e tal...


do Pinóquio,
sorrindo , no ventre da baleia,



ou
- quem  o sabe? - da Pequena-Sereia,
mas nunca a minha face!

Não era a minha face verdadeira!




Maria João Brito de Sousa - 1992/3

Imagem retirada do Google

quarta-feira, 12 de março de 2014

VARIAÇÕES SOBRE O TEMA "UMA CASA PORTUGUESA" - Décimas

Nascem selvagens, libertos,
Vindos de coisa nenhuma
Com asas feitas de espuma,
Nos momentos mais incertos
E, se engendram desconcertos,
Trazem razões que, uma a uma,
Vão dissipando esta bruma
Pr`a deixar-nos bem despertos
Pois, se de razões cobertos,
Quem nos seus versos se assuma

E com muitos os reparta
Sobre mesa igualitária
Sem intenção mercenária,
Tirará, da mesa farta,
Quanto o tirano descarta,
Numa ânsia totalitária
De refeição bem mais vária…
E, venha Zé, venha Marta,
Venha “encartado”, ou “sem carta”,
Que a festa é mais necessária

Do que muita gente pensa
Quando não falta na mesa,
Do poema, a clara franqueza
Que a comunhão torna imensa
Pois, mesmo tendo pertença,
Traga alegria ou tristeza,
Nunca é fútil nem burguesa
Porque em si própria condensa
Quanto um povo não dispensa
Se a casa for… portuguesa!



Maria João Brito de Sousa – 12.03.2014 – 17.27h

sábado, 8 de março de 2014

A MULHER INTERROMPIDA

Não foi assim tão antigamente... 
Não  foi há mais que um tempo 
mais duas metades de dois tempos meios,
que uma voz, amiga certamente,
embora longínqua, perguntou por mim
quando eu, de confusa, nem me conhecia...

Sou a mulher do meu homem,
respondia,
e a voz insistia:
- Mulher, quem és tu?
- Sou a mãe de um filho que não mora cá
e de três meninas que me querem muito,
apesar da culpa, apesar de tudo...

E a voz repetia:
- Mulher, quem és tu?

Sei que juraria que lhe não mentia
portanto insistia:
- Ninguém, senão mãe, apesar do luto!

Não cedia a voz, quando perguntava
do Espaço, do Tempo, de outras coordenadas:
- Ó mãe dos teus filhos, diz-me quem és tu!
Onde moram as tuas horas carnais?
Onde guardas o corpo quando sais
pr´a voar em busca do filho perdido?
Que fazem tuas mãos?
Que estrelas tão negras trazes nesse olhar?
Que morte tão estranha te veio buscar
esquecendo o teu corpo entre os teus irmãos?

Lá lhe respondia
sem me aperceber
que me descrevia sem me conhecer:
- Sou a mulher do meu homem
porque a mãe das minhas crias!
Procuro o que se perdeu,
o que morreu mal nasceu,
o que mais quero encontrar!

Mas a voz continuava
 sem parar de perguntar:
- Mulher, que é feito de ti?
Só a ti tens de encontrar!

Então procurei-me em mim
e vi que não estava lá...
Decidi correr o mundo
desde o abismo profundo
às mais altas cumeadas;
nadei no Ganges, no Nilo,
desci ao ventre tranquilo
das cavernas ignoradas...

Corri terra, mar e céu,
muito além do mundo inteiro!
Foi então que, de repente,
para grande espanto meu,
me encontrei num frente a frente
com um corpo nada alheio
àquela procura urgente
pois nele coube, exactamente,
a chama acesa em meu peito

e, juro,
foi então
que, pela primeira vez
em toda a minha vida,
me ri da minha imagem denegrida,
desdenhei não ser compreendida
e, inteira, me orgulhei da condição
de ser uma mulher interrompida!





Maria João Brito de Sousa – Verão 1992

(Revisto e ligeiramente reformulado)


Imagem - Bride of the Wind - Oskar Kokoscka